19 de dezembro de 2014

Divulgando:


SEGUNDA PARTE DO:


  

Dois dias depois, Rosa estava na cidade grande. Quase sem dinheiro, o ourives dissera que os brincos não valiam grande coisa, e pagou por eles tão pouco que quase nada sobrara depois de comprar o bilhete para a capital.
A cidade era enorme e ela não sabia para onde ir nem o que fazer. Caminhou por uma rua enorme, tão grande que era maior que a sua aldeia, batendo a todas as portas, pedindo trabalho. Mas as pessoas olhavam-na de alto a baixo como se ela não regulasse bem da cabeça e fechavam-lhe a porta na cara. Algumas até lhe acicatavam os cães. Realmente o seu aspeto não era muito agradável. A saia castanha de casimira até ao tornozelo estava bastante amassada da longa viagem de comboio, a blusa de pano-cru, com uma gola redonda, em cuja orla a avó fizera um enfeite, estava enxovalhada, as tamancas de madeira e couro e a cesta de vime escuro, onde transportava algumas peças de roupa, completavam a sua indumentária.
Faminta e cansada, sentou-se num banco de um jardim sem saber o que fazer ou para onde ir.
Pouco depois, uma mulher de meia-idade sentou-se a seu lado no banco e meteu conversa com ela. Perguntou-lhe o nome, a idade, se estava sozinha em Lisboa, se não tinha família.
Desorientada e carente, Rosa contou de onde viera, falou da morte da avó, única parente que tivera até aí, do seu desejo de arranjar trabalho, afinal a cidade era tão grande, tinha tanta casa, mal haveria de ser que ninguém precisasse de uma criada. E ela sabia fazer tudo menos comida, que nunca cozinhara e só sabia fazer chá.
Depois de a ouvir, a mulher disse que tinha trabalho para ela. Era só acompanhá-la até à sua casa.
Rosa sentiu que lhe nascia uma alma nova, quase teve vontade de abraçar a mulher.
Quando lá chegaram, esta levou-a para um quarto como Rosa nunca tinha visto. Era espaçoso, tinha uma grande cama de casal, coberta por uma colcha adamascada em tons de vinho, reposteiros do mesmo tecido, duas mesas-de-cabeceiras e um armário com as portas em espelho de alto-a-baixo. Ao lado uma porta. A mulher abriu a porta e Rosa viu um quarto de banho parecido com aquele que tinha visto na casa grande lá da aldeia. A mulher disse-lhe para se lavar e vestir as roupas que estavam no armário. Deviam ser mais ou menos do seu tamanho.
As tuas não servem. Não se usam na cidade nem fazem jus à tua beleza. Daqui por meia hora, venho buscar-te para o jantar.
Deixou-a sozinha. Rosa estava espantada. Foi até ao outro quarto. A tina para o banho era enorme. Devia caber lá dentro uma pessoa estendida. E ela estava habituada a tomar banho num alguidar. Tirou a roupa e meteu-se dentro de água. Estava fria mas não se importou. Afinal estava-se no fim de Setembro e o tempo ainda não ia muito frio. A toalha era tão macia, que se enxugou deliciada. Depois, procurou no armário alguma coisa para vestir e, entre os vários fatos que lá estavam, escolheu um vestido azul. Olhou-se no espelho e achou-se estranha, com o grande decote e a saia quase pelo joelho. Mas enfim se era assim que se vestiam na cidade…
Tinha acabado de se vestir quando a mulher a veio buscar para jantar. Na casa de jantar, já estavam quatro jovens a quem a mulher a apresentou dizendo que eram companheiras de trabalho. Ficou espantada. Devia ser uma casa muito rica para ter tanta criada.
Durante o jantar, enquanto a mulher foi atender o telefone, uma das raparigas perguntou-lhe se ia para a sala nessa noite.
Fazer o quê? – Perguntou
Esperar os clientes. A maioria vem de dia, mas alguns vêm sempre à noite.
Clientes? Do quê?
A outra viu que ela não sabia do que se tratava e apressou-se a calar-se não fora a “madame” zangar-se.
Quando a mulher voltou, Rosa perguntou-lhe quando começava a trabalhar. Ela não se importava de começar já. Podia lavar a loiça e arrumar a cozinha. As outras raparigas olharam-se entre si espantadas.
Falamos quando acabarem de jantar - disse a mulher
No fim do jantar, chamou-a a uma pequena sala e aí disse-lhe:
  Aqui não terás que fazer trabalhos domésticos. Só terás que atender lguns clientes e seres simpática com eles. Em troca, terás comida, roupa e até algum dinheiro no fim do mês. Só não poderás sair à rua sozinha.
Mas simpática porquê? Tenho que vender alguma coisa?
Ó rapariga, mas de onde diabo vens tu? Ainda não percebeste? Isto é uma casa onde os homens vêm em busca de umas horas de prazer, ou de alguma fantasia que as mulheres não lhes fazem em casa. A “mercadoria são vocês”.
Mulher da vida? – Perguntou a medo lembrando-se de quando ouvira a palavra lá na aldeia e perguntou à avó o que era.
Ah! Afinal sempre sabes alguma coisa.
Não quero. Quero-me ir embora – gritou.
Podes ir! - Disse a mulher com estranha calma. Vai dormir para o jardim onde te encontrei. A meio da noite, terás que aguentar os homens que lá passem e sem que te paguem. Bem podes gritar, que se alguém aparecer e chamar a polícia ainda vais presa. Aqui, podes descansar hoje e amanhã começas a trabalhar. És muito bonita. Não vão faltar interessados.
Rosa, completamente destroçada, muda de espanto e medo, recolheu ao quarto e atirou-se para a cama a chorar desconsoladamente.
Mais calma lembrou-se dos ensinamentos da avó devota de Nª Senhora do Rosário. Abriu o cesto e, embrulhado num lencinho branco, lá estava o terço de contas meio gastas de tantas e tantas vezes passadas entre os dedos rugosos da avó. Ajoelhou e pondo a alma em cada oração rezou como nunca o fizera na vida. Uma vez e outra e outra até adormecer de cansaço.
Vá-se lá saber se foi coincidência ou intervenção divina, mas na tarde seguinte apareceu na casa um homem jovem que, ao vê-la, se engraçou dela e depois de uma conversa lhe perguntou se queria casar com ele. Ela pensou que ele era um anjo mandado pelo céu e aceitou na hora. O homem falou então com a dona do bordel, que lhe disse que se queria levar a rapariga tinha que pagar 20 escudos, pois fizera gastos com ela dos quais não ia ver retorno. O homem prometeu voltar à noite com o dinheiro e pediu que, entretanto, a rapariga se recolhesse ao quarto e não fosse vista por outros homens.
Vinte escudos em 1946 era muito dinheiro, mas o homem voltou à noite com a quantia pedida. E Rosa saiu daquela casa, com as suas velhas roupas, algum temor no coração, mas também com muita fé num destino melhor.
João, assim se chamava o homem, trouxe-a até ao mar onde apanharam um barco para o Barreiro, pois era aí que ele trabalhava e morava. Rosa nunca tinha visto o mar e tremeu de medo os trinta e cinco minutos da travessia. Por medo do mar, por vergonha do homem que a “comprara”, porque ela achava que fora isso que acontecera, por temor do que o homem poderia fazer, Rosa nem se atrevia a falar.
Quando finalmente saíram do barco, o homem pegou no cesto dela e disse:
Anda, temos que caminhar ainda um bom bocado. Mas não tenhas medo, já falei com a minha irmã e dormes lá hoje. Amanhã vou procurar uma casinha para os dois e vamos falar com o padre.
 Ela assentiu com a cabeça e começou a segui-lo. Caminhavam por um sítio de terra batida, junto ao mar, mas aquela parte do mar era estranha, não tinha água. Ao manifestar a sua estranheza, o homem explicou que aquilo não era mar, era o rio Coina, afluente do Tejo, que a maré estava vazia, e quando a maré vazava só ficava o lodo. Depois, começava a encher de novo e levava seis horas até a água chegar àquela orla por onde caminhavam agora. Com a ingenuidade de uma criança, ela perguntou:
E para onde vai a água do mar quando vaza?
Ele soltou uma gargalhada e respondeu:
E alguém sabe?
Depois, talvez para encurtar o caminho, começou a fazer perguntas sobre ela. Donde era, se não tinha família, como é que tinha chegado até ali.
Por vergonha, ela limitou-se a dizer o nome da aldeia e que não tinha ninguém na vida.
Landeira? Mas isso é muito perto da minha aldeia. Eu sou da Trapa, pertencemos ao mesmo concelho.
Antes de chegarem ao seu destino, passaram por uma espécie de pequena lagoa que, contrariamente ao rio, se apresentava cheia de água. Numa ponta entre a lagoa e o rio, uma pequena ponte de madeira e, sob ela, um grande portão de zinco. Apesar da escuridão noturna, ela parou:
É a caldeira do alemão, pertence àquela casa grande ali em cima, que é uma fábrica de cortiça. É ali que eu trabalho. Vem, já falta pouco.
Andaram mais um bocado e foram ter a um sítio cercado por arame farpado e um portão grande no qual o homem bateu.
Pouco depois, uma mulher abriu o portão. Era Amélia, a irmã de João, a porteira daquele lugar, que ela soube depois, era a Seca do Bacalhau, de que falavam na aldeia, algumas pessoas que todos os anos eram engajadas para a safra.
Amélia tratou-a com naturalidade e até talvez um pouco de carinho. Rosa pensou que ela não devia saber onde o irmão a tinha ido buscar. Estava enganada.
João era o mais novo de seis irmãos. Não chegou a conhecer o pai, que morrera lá longe na França, na primeira grande guerra. Devia sentir-se orgulhoso, já que toda a gente lhe dizia que o pai fora um herói, mas não era assim que ele sentia. O que sentia era uma grande mágoa de não o ter conhecido e uma grande revolta contra as guerras que deixam sozinhas mulheres cheias de filhos para criar. Pouco depois do início da segunda grande guerra, João foi para a tropa. Portugal não entrou diretamente na guerra mas, através dos Açores e da base Americana lá implantada, pode dizer-se que de certa maneira lá esteve. João foi destacado para os Açores, para prestar serviço nessa base aérea. Quando embarcou, o medo de que a base fosse atacada pelas forças inimigas era real, tanto entre os portugueses como entre os americanos. O grupo de soldados foi a Fátima, despedir-se da Virgem e pedir a sua proteção.
Então, lá perante a Virgem, João fez uma promessa que para muitos podia ser estranha, mas que foi o que lhe ocorreu. Prometeu que, se voltasse são e salvo, tiraria uma mulher “da vida” e casaria com ela. Toda a família sabia da promessa e, naquele tempo, era uma coisa sagrada que se cumpria sem contestação.
 Depois de sair da tropa, João procurou trabalho e quando o teve começou a pensar que tinha que cumprir a promessa. Naquele tempo, os bordéis eram proibidos por lei mas, em Lisboa, havia alguns que por qualquer razão, que ele não entendia, as autoridades fingiam desconhecer.
Aos fins-de-semana, João começou a percorrê-los. Quando encontrou Rosa, já tinha visitado dois, mas ninguém lhe agradou. Ou eram já demasiado velhas, para a mulher que ele queria para mãe dos seus filhos, ou estavam por demais ligadas àquela vida e não se habituariam a uma vida diferente. Por isso, quando viu Rosa, com o seu ar provinciano e assustado, sentiu que tinha encontrado o que procurava.
Quando foi buscar o dinheiro exigido pela dona do bordel, João falou com a irmã, que lhe disse que podia levar a moça lá para casa até casarem.
E agora, ali estava ela, numa casa estranha, pobre de móveis, mas rica de vida, a julgar pelos dois catraios que andavam à roda dela como cão à volta do dono.
Amélia destinou-lhe a cama de um dos filhos, os rapazes dormiriam juntos, não havia problema. Depois, não seria por muito tempo.
No dia seguinte, quando viu Amélia lavando roupa no tanque foi até lá para ajudar e, também, porque queria conversar com a futura cunhada, longe de interrupções.
Pegou numas calças, mergulhou-as no tanque e disse:
Vim ajudar com a roupa Amélia.
Não carece Rosa.
Mas eu quero ajudar. E também queria falar consigo. Saber se é verdade que o seu irmão quer casar comigo e porquê.
Saber se é verdade? Tens dúvidas?
Foi muito estranho o que aconteceu.
Vai-te habituando. A vida tem muitas coisas estranhas. Tu por exemplo, não te pareces em nada com o que tenho ouvido falar das mulheres que levam a vida que levavas.
Sem se conter, Rosa deu livre curso às lágrimas. Amélia ficou espantada.
Que se passa agora? Porquê esse choro? Não disse nenhuma mentira ou disse? Não estavas numa casa de “meninas”?
Ela assentiu com a cabeça e depois perguntou:
Posso confiar em si?
Claro, mulher! Afinal vamos ser cunhadas. Mas antes deixa de me tratar por você. Que diabo, não estou a tratar-te por tu? Faz o mesmo.
Então, Rosa abriu o seu coração e contou tudo desde aquela fatídica tarde no monte.
Juro-lhe, por tudo quanto há de mais sagrado, que digo a verdade – terminou Rosa ao perceber o ar incrédulo da outra.
Pois então agradece a Deus que te livrou de um destino que não desejavas. Às vezes ELE escreve direito por linhas tortas.
E então falou-lhe da ida de João para os Açores, da promessa que ele fizera e de como a família se sentia preocupada com a mulher que ele arranjasse. Nunca lhes passou pela cabeça dissuadi-lo. Isso não! Promessa é sagrada. O Sr. Padre, sempre lhes dissera “Muitas graças a Deus e poucas graças com Deus” e terminou:
Vamos rapariga lava aí essas lágrimas e prepara-te para enfrentares a vida que te espera. Não será fácil. Somos pobres, vivemos do trabalho quando o há e quando não. O que eu quero dizer é que aqui se trabalha seis meses por ano e tem que se guardar para os outros seis meses. Felizmente, o João tem trabalho todo o ano na fábrica e já se inscreveu para a C.U.F.
Se tiver a sorte de entrar, vai ser muito bom. Lá ganham melhor, fazem muitos turnos. Não tens nada para a tua casa e nós não poderemos ajudar grande coisa. Talvez uma panela ou uns pratos. Se quiseres trabalhar, segunda-feira podes ir ao escritório da Seca. O trabalho é duro mas sempre podes comprar alguma coisa para a casa.
É claro que vou lá ver se me dão trabalho. Foi coisa que nunca me meteu medo. Obrigada por me acolher e me aconselhar.
Então, agora vamos lá fazer o almoço que está na hora. À tardinha uma de nós vem apanhar a roupa.
Fim da segunda parte, continua...

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8 comentários:

Carmen Lúcia.Prazer de Escrever disse...

Olá Viviani,passando para lhe desejar um Feliz Natal e um 2015,com muita saúde,amor,esperança e paz.
bjs-Carmen Lúcia.

Bell disse...

Rosa sofreu tanto tadinha...

Laura Santos disse...

Uma história de muito sofrimento que depois acabará bem!
xx

Cristina disse...

Un relato extraordinario... continúa.
Te deseo un hermoso fin de semana, besos!

Que el año nuevo traiga consigo un sueño por el cual luchar, un proyecto que realizar, un lugar donde descansar, amigos en quien confiar… Felices fiestas te deseo con mucho cariño!
…....... /)
……... ( , )
….….|░░░|
……..|░░░|☆ Feliz _(♥)_
…..@|░░░|¸.¤“˜¨Navidad.
.¨˜“¤|░░ഐ¤ª@“˜¨¨y
…¨˜“გª¤.¸::¸.¤ª☆“˜¨¨Año Nuevo.
…¤¸*¸.¤ª“˜@¨¨¨***2015****.
*♥*.

Elvira Carvalho disse...

Vim mais uma vez agradecer a sua gentileza.
Um abraço e boas festas

Lu Nogfer disse...

Olá caríssimo amigo!

Li o post anterior da divulgação e do primeiro capítulo do conto.
Você, como sempre, apresentando grandes autores. A Elvira escreve muito bem e seus contos são irretocáveis.
O "Rosa" é instigante do início ao fim!
E você esta de parabéns por mais uma bela partilha.

Meu querido, quero agradecer pela companhia e espero que continuemos no próximo ano unidos nessa blogosfera numa agradável troca de energia como tem sido.
Desejo-te que tenha o melhor dos natais juntamente com os seus e que 2015 lhe traga ótimas surpresas e realizações.
Paz, amor e muita saúde a todos nós!

Beijos!



Marcia Pimentel disse...

Olá, Viviani!
Estou adorando o conto. Tive pena da Rosa, mas com a chegada de João a vida dela parece que vai mudar.
Vou continuar lendo, esperando pela terceira parte.
Bjs

Leila Bomfim disse...

Oi meu amigo Viviani. Desejo a você um ano novo repleto de muitas alegrias.