23 de dezembro de 2012

Contos e Prosas - apresenta a criação de:


Celeste

Mal o despertador tocou, Celeste saltou da cama. Lavou-se a correr e foi para a cozinha. Com gestos completamente automatizados, pegou no isqueiro e acendeu o fogão. Era noite ainda, mas Celeste trabalhava longe. Começou a fazer o almoço, para ela e para o marido. Uma lágrima soltou-se e veio cair no alguidar onde tinha as batatas para descascar. Estava cansada. Cansada daquela vida de miséria física e moral em que se encontrava. Onde tinham ficado os sonhos de menina? -Interrogou-se enquanto acabava de descascar as batatas. Onde a ilusão de um homem bonito, que se apaixonasse por ela e lhe desse uma vida de amor e felicidade?
Juntou duas postas de bacalhau às batatas e o sal, quase sem dar por isso absorta nas suas recordações.
Celeste era uma mulher bonita, sem ser nenhuma beleza estonteante. Era pequena, de pele trigueira, com aquela cor das pessoas que vivem à beira-mar. Tinha o cabelo preto e uns olhos castanhos, que muitas vezes se enchiam de lágrimas. Era uma menina ainda, com toda a inocência dos seus quinze anos quando conheceu aquele que era o seu marido.
Afonso era um homem bonito. Mais velho e mais vivido, não foi difícil apoderar-se do coraçãozinho de menina que batia no peito da Celeste.
Casaram um ano depois. Celeste já carregava no ventre um filho. Ainda menina, teve que aprender a ser mãe, e a cuidar daquele pequeno ser, que Deus lhe quisera enviar.
Depressa se apercebeu que o marido não era o príncipe com quem sonhara. Um dia, tinha o filho três meses, Afonso saiu depois do jantar, deixando-a em casa com o filho, e só regressou depois da meia-noite completamente bêbado.
Como se fora um autómato, Celeste apagou o fogão, escorreu a água às batatas e dividiu a comida pelos dois termos. Pegou as duas lancheiras, que estavam em cima do aparador, colocou um termo em cada uma, juntou uma carcaça do dia anterior, uma pêra e um garfo. Encheu uma garrafa de meio litro de tinto e colocou numa das lancheiras. Foi ao quarto e acordou o marido. Na volta pôs um pano de cozinha em cada lancheira e fechou-as.
Tirou as chaves que estavam na porta, pegou na carteira, e na lancheira, e atirou um seco até logo, saindo de seguida. Não foi ao quarto despedir-se do marido. Há muito que não trocavam um beijo carinhoso.
Enquanto se dirigia à paragem do autocarro, na cabeça fervilhavam as recordações, dos olhos soltavam-se as lágrimas.
O filho crescera e saíra de casa. Nunca se sentira lá muito bem, nem tivera uma relação de amor com o pai. E assim que se empregou, arranjou uma casita e foi morar sozinho. A sua vida ficara então mais triste, sem a presença do filho.
Já lhe ocorrera pedir o divórcio. Porém o medo e a vergonha sempre a faziam desistir da ideia.
Recordou a primeira vez que o marido lhe batera. E a desculpa com que teve que encobrir, perante a família, a vergonha e a dor que sentia tanto ou mais do que os hematomas. E os dias sem lhe falar. Dias em que ela lhe gritava o nome de manhã antes de sair de casa, e não se falavam mais.
Como agora que não se falavam desde que há oito dias ele lhe tinha voltado a bater. E tudo por causa do álcool. Mordeu os lábios para abafar um soluço ao lembrar - se daquela noite. Ela já dormia, quando Afonso chegou. E estava tão cansada que nem deu por ele se deitar. Acordou com o peso do marido em cima dela. E aquele bafo nauseabundo de bêbado. Quis empurra-lo, fugir da cama. Mas não conseguiu. Ele era muito mais forte e puxara-lhe os cabelos com violência. Virou o rosto e isso enfureceu mais " a besta". Porque Celeste não reconhecia mais o marido naquele selvagem. Quando consumados os seus intentos se virou para o lado e adormeceu, ela levantou-se e meteu-se debaixo do chuveiro. Esfregou o corpo com raiva, enquanto as lágrimas se misturavam à água. Voltou para a cama, e acomodou-se tentando não tocar no marido. Não dormiu mais. E agora enquanto esperava pelo autocarro, pensava que rumo dar à sua vida. O amor que sentira um dia por aquele homem, já sofrera muitas alterações. Foi raiva, medo, ódio, desprezo e agora era também nojo.
De repente saído do nada, veio-lhe à memória, o poema.
Anda Luísa,
Luísa sobe...
Sobe que sobe,
Sobe a calçada...
Sacudiu a cabeça, ao mesmo tempo que pensava, se o poeta saberia da sua existência.
É que aquela Luísa era ela...


Elvira Carvalho
Direitos Autorais Reservados ®

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22 comentários:

POR TODA MINHA VIDA disse...

Elvira querida ...Magnífico conto ...profundo e sutil...muito nele englobas dos aspectos de uma vida real Meus sinceros parabéns Pedro Pugliese

Lua Singular disse...

Oi Elvira!
Gostei do seu conto, mas fiquei com raiva do cafajeste do marido.
Sábia era minha mãe semianalfabeta que sempre me dizia: mulher tem que ser independente e se um dia se casar e o marido quiser lhe bater, pegue o que tiver por perto e arrebenta na cabeça dele. Nunca foi preciso, mas se fosse,
não exitaria em fazê-lo; pois quem apanha do marido uma vez apanha sempre.
Mulher foi feita para ser amada e ser mãe e não saco de pancada.
Adorei, você tem uma escrita culta de uma poetisa.
Beijos
Lua Singular

Unknown disse...

Elvira,

Parabéns pelo belo texto. Gostei da forma como escreve.
Abraços literários.

http://didimogusmao.blogspot.com.br/

verinha disse...

Elvira Carvalho!

Bom dia,parabens pelo exelente trabalho,uma obra marvilhosa.

Sucesso,minha querida!

vera portella

Célia disse...

Olá, Elvira! Voc~e descreveu romanceadamente, a vida como é para muitas mulheres que se escondem no "mastro do casamento" como se fosse vil sair dele! Sabe, deu-me "raiva" dessa mulher submissa. Sei que há muitas ainda hoje. Mas, não é meu perfil, de jeito nenhum. Respeito à individualidade. Sem isso não pode haver e perdurar amor algum! Parabéns pelo seu relato contundente e real!
Abraço, Célia.

Escritora de Artes disse...

Olá Elvira,

Um texto sofrido e verdadeiro que relata a vida de milhares de mulheres, infelizmente!

Parabéns pela sua bela participaçao..

Abçs

Anônimo disse...

Un cuento lleno de profundidad y, por desgracia, real en este tiempo en que vivimos.
Ningún ser humano tiene por que sufrir la violencia y menos, por supuesto, la Mujer de nuestra Vida.
Um abraço.

Carmen Lúcia.Prazer de Escrever disse...

Lindo conto Elvira!Ela somente deveria deixar esse homem que lhe fez tanto mal e partir quem sabe para um novo amor.

Bjs.
Carmen Lúcia- mamymilu.blogspot.com

Tunin disse...

Infelizmente o que tu escreveste é o que acontece pelo resto do mundo e as Celestes da vida sofrem caladas. Mas tudo tem um tempo para o grito de liberdade.
Excelente o teu conto.
Feliz Natal!
Abração.

Elvira Carvalho disse...

Começo por agradecer a si J.R. Viviani a honra de me ter deixado participar deste evento e publicar no seu espaço o meu conto.
Quero depois agradecer a todos que comentaram e explicar que embora este conto seja total ficção, este é um drama cada dia maior no meu país onde este ano as vitimas mortais de violência domestica ascendem a 38 mulheres e 6 crianças. E o ano ainda não acabou.

Por fim quero desejar a todos um Santo e feliz Natal com muita luz e Amor.

Abraço

lourdes disse...

Um retrato fiel de muitas "celestes" que existem por esse mundo fora. Vítimas dos maridos em primeiro lugar, mas tambem da sociedade, que muitas vezes ainda as critica quando não sabem o que se passa dentro da casa de cada um.

Bjs

Nádia Santos disse...

Difícil falar desse assunto tão triste, das tantas e tantas Celestes que sofrem por ai. Que apanham, são humilhada mas mesmo assim continuam dividindo o mesmo teto com seus algozes... por que? Muito bem desenvolvida sua narrativa Elvira. Bjus querida e feliz natal!

Mariangela l. Vieira - "Vida", o meu maior presente. disse...

Parabéns Elvira pela sua participação
com este lindo e real conto. São tantas que passam pela mesma situação de humilhações, quietas, sofrendo, enquanto o que deveriam fazer é denunciar e acabar com todo sofrimento.
Abraços,
Mariangela

VILMA ORZARI PIVA disse...

Olá Elvira, lindo o seu conto mostrando os sufocos e sofrimentos de uma mulher mal casada. Infelismente a vida é assim para muitas mulheres.
Parabéns!!

Feliz Natal! Feliz Ano Novo!
Beijos!

Projeto de Deus 👏 disse...

Elvira!

Parabéns pelo lindo conto.

Linda participação!


Aproveito para te desejar um

FELIZ NATAL!

Maria Machado disse...

Feliz Natal... Elvira Carvalho! Parabéns uma belíssimo conto, muito parecido com nosso cotidiano,há muitas celestes por aí.
Quero te desejar muitas paz e amor nesse dia de hoje, e sempre!
Um abraço
Maria Machado

Cesar disse...

Uma corriqueira realidade muito bem narrada e colorida com as tintas da sensibilidade. Despertou a minha curiosidade sobre a autora.

Vane M. disse...

Sem dúvida um conto que fala sobre as muitas Luisas que sofrem caladas de dor e humilhação. Belo conto! Um abraço!

Bento Sales disse...

Olá, ilustre amiga Elvira!
A protagonista é um exemplo de vida bem oportuno para muitas mulheres oprimidas hoje. Não poderia viver num averno desses a vida toda, pois contrariaria seu nome, que significa "do céu" (Celeste).
Mostra-se, outrossim, uma pessoa forte e inteligente ao se preocupar não só com seu filho, mas também se si.
Amiga, o conto está primoroso.
Tens excelente narrativa: fizeste o flashback com maestria.
A linguagem é também brilhante.
Tua gramática é admirável, enfim, o conto é, deveras, um obra-prima.
Parabéns pela virtuosidade e pela esplendorosa participação neste evento sensacional do nobre amigo Viviani!

Abraços fraternos do amigo!


Elvira Carvalho disse...

Mais uma vez agradeço ao amigo J. R. Viviani a honra de me ter deixado participar deste evento. Agradeço também a todos os que comentaram, irei hoje a cada um dos vossos blogues para agradecer, já que os dias anteriores foram complicados.
Deixo um abraço e os votos de que o 2013 seja um ano de muitas saúde, e de grandes realizações pessoais para cada um de vós.

Lu Nogfer disse...

Querida,

Quantas Luísas ha por aí vivendo o mesmo drama.E no final recebendo as palavras de um poeta. Subindo a calçada.Indo em frente...

Muito vedadeiro o seu conto!
Parabens!

Abraços

Anónimo disse...

Olá, estimada amiga Elvira!

Li, com olhos de ver, o seu bem contado conto, passo a redundância embora ligeira, e como sempre, baseou-se em factos da vida real.

Sei que ainda existem algumas Celestes por aí, mas já é tempo de mudança de mentalidades, desde que não se percam, a decência e o amor, por nós próprios.

Terminar com António Gedeão, e fazer a comparação com Luísa, foi a cereja no topo do bolo.

PARABÉNS PELA SUA BRILHANTE PARTICIPAÇÃO.

Beijinhos.